Ensaio sobre narração

isa
4 min readAug 25, 2021

Dias desses recebi alguns comentários sobre meus textos e um deles, especialmente, me chamou a atenção. O comentário dizia algo sobre a narradora ora se afastar da personagem, ora ser a própria personagem. Instantaneamente me deu vontade de explorar essa técnica em um só texto. Mas como? Bom, aqui vai minha tentativa.

Abriu os olhos. Estranhou o ambiente. Aquele não era seu colchão. Ela não tocava guitarra. Tampouco colecionava vinis. Não se lembrava de ter um gato malhado. Nem de deixar uma garrafa d’água ao lado da cama.

Eu definitivamente não tinha acordado no meu quarto. Ainda assim não lembrava onde estava. Na noite anterior, tinha ido ao bar com alguns amigos. Bebi os mesmos seis chopes que bebia antes de pedir a conta e a saideira. Paguei, no débito. Peguei minha bolsa e saí para fumar um cigarro.

Enquanto tentava se lembrar do que tinha acontecido depois do cigarro, alguém abriu a porta. Ela se ajustou debaixo da coberta, percebendo que vestia apenas suas meias. “Ah, então era ele!” — pensou. O cara de óculos sentou-se num banquinho em frente uma escrivaninha e acendeu um cigarro. Segurava uma caneca de café, ela podia sentir o cheiro.

Fingi que ainda estava dormindo para melhor desembaraçar minhas memórias da outra noite antes de puxar qualquer assunto. O gato pulou na minha barriga. Talvez isso me tenha feito lembrar de que o dono daquela cama também estava indo embora do bar no mesmo momento que eu. Era uma figura conhecida. Um amigo eu diria.

Ainda assim, ela não conseguia entender como havia parado ali, no quarto dele. Sim, havia muita tensão no ar quando os dois estavam juntos. Já haviam trocado algumas indiretas. Mas nenhum dos dois se atrevia a dizer o óbvio. Eram apenas dois amigos que frequentavam o mesmo bar e gostavam das mesmas bandas. Ela arriscou fazer um carinho no gato, mesmo sabendo que ele poderia notar que ela havia acordado.

Eu não tinha certeza do que aconteceria a partir do momento em que eu abrisse meus olhos, com ele ali, sentado em minha frente. Mesmo assim, fui adiante. “Oi!”

“Bom dia!” — ele respondeu. O gato pulou da cama quando ela decidiu se sentar no colchão, afastando a coberta. “Nossa, acho que bebi demais.” — ela comentou. “Quer café?”

Uma xícara de café cairia bem, pensou. “Aceito.” — respondeu. Enquanto ele saía do quarto, ela aproveitou para dar uma olhada ao redor. Livros numa estante, a guitarra, um pôster do Almodóvar, algumas roupas jogadas num canto, incluindo as suas. Rapidamente, vestiu o que achava necessário e voltou ao seu lugar na cama. Ele entrou e entregou a xícara fumegante.

“Esse filme do Almodóvar é muito bom!” — disse. “Também gosto bastante. Dormiu bem?” — ele perguntou. Talvez eu estivesse falando coisas sem sentido, apenas para dar tempo de acordar o suficiente e me lembrar de como tinha chegado até ali. Dei um gole no café, que caiu como um abraço no meu estômago e respondi que sim. Outro gole de café e fiz um comentário sobre o pouco que me lembrava da noite anterior: “Aquela banda que tocou ontem à noite era bem boa.”

Ele apagou o cigarro e fez um “Uhum”. Nesse meio tempo, uma memória veio à sua cabeça. Ela estava fumando do lado de fora do bar e não conseguia encontrar um Uber. Ele chegou. “Quer uma carona?” — foi assim que ela lembrou. Ela devia ter respondido que sim e lembrou-se de que em algum momento durante o caminho cantaram Modest Mouse a plenos pulmões. Ele parou o carro em frente ao seu prédio. Ela fingiu que procurava as chaves na bolsa. O Modest Mouse ainda tocava no rádio. Surpreendentemente, ele fez um carinho no seu joelho, pelo buraco da calça jeans.

Tomei o resto do café e agora as coisas pareciam fazer mais sentido. Do carinho em meu joelho desenrolou-se uma conversa arrastada, cheia desses “diz que me diz”, “diz que me disse”, ou sei lá o que. Em dado momento, nos olhamos, já sem ter o que dizer e só o que nos restou foi um beijo. Ele me chamou pra dormir na casa dele e eu aceitei. Afinal, não achava minhas chaves. Sim, essa foi a desculpa que me dei.

E assim, terminada a xícara de café, todo o mistério da noite anterior estava desvendado. Ela se levantou, fez um carinho no gato, colocou a xícara na escrivaninha, fitou a prateleira de livros e disse: “Me leva embora?”

E esse foi meu ensaio sobre narradoras.

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